domingo, 25 de setembro de 2016

Amarelo

Nove e quarenta e cinco. Calor de outubro. Muita confusão lá fora, calma aqui dentro. Fios de telefone no chão. Tintas e pincéis no piso envernizado - escorregadio. Misturou-se à tinta do seu corpo e com seus cabelos cortados e com tudo de belo que ele escrevera, agora apresentado em desfiguras aleatórias. Ainda o gravador, que toca música que faz chorar,  como no abraço que faz chorar.

Há um escrito na parede, mas agora estou cego. Vislumbro a fragilidade em ser humano. Nossa condição de ser quem quiser, sem nunca chegar à conclusão do ser. O quarto não tem cor nem movimento. Sua percepção dá-se pelo mero fato de eu ser humano que enxerga antes de reconhecer. O quarto não faz sentido. Existe externo à minha vontade.

Sento no chão, muito perto do meu medo.  Noto uma vela ao meu lado. A cama bem-arrumada. Triste. O cheiro. O cheiro que antes convida. Já não reproduzem música. Não serve a que trouxe comigo. 

Lembro quando dizia que queria uma filha enquanto ainda era jovem. 

Todo o tempo de luz apagada e tinta de caneta borrada fazem sentido. Todo dano faz sentido, eu queria que não. 

Fito sua parede.

Epifania.

"Peguei a chave de meu pai, estou me mudando."





sábado, 20 de fevereiro de 2016

O velho e o mar

Não muito tempo atrás, um amigo veio até mim sussurrar essa história...

Era bem simpático o velhinho desse conto.

Eu poderia mentir que ele ouvia jazz, entendia de vinhos ou que tinha uma confusa concepção sobre criação, mas não. O velhinho só era simpático. Ainda não havia sido contaminado pela decadência do homem desses tempos e sabia sorrir.

Todos os seus dias, pouco antes das seis ele estava lá, desamarrando o barquinho do toco para cair no mundo. Uma vez, quando bem criança, seu pai disse que se ele não cansasse o braço de remar e passasse a noite remando, ele amanheceria o dia na Europa. Ele acreditou, mas quase se esquecia da história.

Na noite que completou vinte anos, decidiu que era homem o suficiente para tal missão: calçou os únicos sapatos que tinha, arrumou em um lençol meia dúzia de camisetas, duas calças - naquela época jeans era luxo -, as duas fotos que possuía da mãe, outro lençol e jogou o volume no barco. Passou perfume e subiu pro bar do Azul. Tomou cachaça como se o mundo fosse acabar. Quando já muito tonto, avistou Luzia.

Luzia era sem dúvidas o ser humano mais bonito que já cruzara sua vista. Polparei descrevê-la para que você possa criar sua própria definição das graças de Luzia baseada em alguma Luzia que você já tenha visto. Todo contato que tiveram aquela noite foi quando seus olhos se encontraram uma única vez - naquele momento, suas duas almas eram iguais, e ele prometeu que se não encontrasse a Europa, voltaria e aquela mulher seria sua vida.

Pediu mais quase uma dezena de doses e saiu do bar, trôpego, mas sua mente era segura. Sabia que era um homem mais capaz.

Então voltou à origem, antes passando em casa para buscar o violão e uma lamparina à querosene que acompanhariam a trouxa no barquinho. Se benzeu cinco vezes e lançou o barco contra o mar.

Infelizmente não dou conta de tornar palavras o que o moço sentiu aquele instante. Ali, sua existência era clara. De repente, ele poderia ser tão feliz quanto a pessoa mais feliz do mundo: se ele prosperasse, chegaria ao lugar onde seu avô disse não haver ninguém pobre, ninguém sequer, e quem quisesse era letrado, comia bem e tinha vida longa. Se falhasse, voltaria pra ilha e teria que suar mais pra ser alguém, mas todo final de tarde era a mesma brisa e ele poderia ter o que parecia o melhor pensamento que já tivera: de tanta gente no mundo, Luzia poderia ser sua para sempre. Ela o escolhera. Ele sabia porque ninguém jamais o olhara daquele jeito. No meio de tanta cachaça, essa fora a maior certeza da sua vida.

Remava com calma, como quando a maré não tem pressa alguma, mas no fundo o que ele queria era seguir a explosão que se passava lá dentro e chegar na Europa sem parar uma vez sequer.

A imagem que ele tinha da Europa guardada no coração era a de uma ilha muito semelhante a que ele crescera, exceto pelas casas e quitandas, que eram muitas, e as pessoas que eram mais claras porque lá fazia menos sol, e mais vestidas por causa do inverno que durava muito - às vezes até fazia frio sem que chovesse, seu avô disse uma vez.

Algumas vezes desconheceu que remar era seu ofício. Nessas horas parava e se reconhecia como gente que cansa. Parou exatamente oito vezes durante as dez horas que passou remando. Tocava uma música a cada descanso, uma oração a cada parada - ele de crente, o violão de livro e a lua de Entidade.

Depois da última oração que ele tocou, quando deu fé já era tarde. As roupas espalhadas pelo barco todo, o violão machucado da água que entrou no barco, o sol escaldando. Acordou de um salto para poder olhar o horizonte. Sem o mínimo sinal de terra firme, sem previsão de chegada. A Europa não existia. Talvez nunca tenha existido além da imaginação do seu pai, e, desde então, da sua. De repente, era a pessoa mais estúpida do mundo. Ai de mim! 

Ai de mim! Com lágrimas transbordando pelos olhos.

Ai de mim! A cabeça rodava, pesada como o mundo.

Ai de mim! Nada em volta além de água e sal.

Ai de mim! Sentiu um sorriso cavar seu rosto muito vermelho, já ressecado pelo sol. Lembrou.

Meu Deus. Luzia.

Ai da gente!

Daria um livro se eu vos contasse como, mas nosso herói levou exatamente três dias e meio para voltar para casa. Seu nome era Santiago. Santiago cumpriu a promessa: descobriu quem era Luzia, fez a ela um banquinho no barco para que o mar não fosse só dele; ela, em troca, consertou seu violão para que rezassem juntos. Agora os dois eram um só, assim como barco e mar.

Mas o tempo passou e um dia ele acordou velhinho. Em um desses dias, empurrou o barco até a água com a cautela que não se via quando era rapaz, porque ele sabia que assim como ele próprio, o barquinho agora tinha suas limitações. Era dia 5 de maio. Fazia cinco anos que Luzia já não remava ao seu lado, e como fizera nos outros anos, ele passaria aquela noite no mar, amarrado no toco, é claro. Essa era uma forma de manter viva a lembrança daquela noite dos seus vinte anos, quando ele precisou se perder para que sua vida começasse a ter direção. Luzia era bússola.

Atirou no mar algumas margaridas - Luzia sempre contava que quando morresse viraria uma margarida, assim como sua mãe. Então ele se aprumou no barco e cantou duas músicas antes de deitar pra dormir. O barquinho agora parecia muito apertado. Seus olhos pesavam, mas mais urgente que dormir era a necessidade da resposta para o o sentido de existir depois que Luzia partira.

Finalmente dormira.

Naquela noite a corda que amarrava o barquinho a esse mundo se soltara, e o velhinho acordara com a tempestade lavando e levando todo o resto de vida que ele tinha. Era a mais violenta tempestade que ele jamais vira, poque ela trouxe consigo a grande epifania da vida: não há história sem amor. Ele sorriu quando enxergou a beleza do encontro de toda aquela água que vinha de cima com a imensidão do mar. O mar, a vida. A tempestade, o fim. O barquinho, o veículo.

Aquela foi a última noite que o velhinho viu o mar, mas ainda aquela noite ele encontrou Luzia para que tocassem uma oração.





segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A mulher que sabia de (quase) tudo

às vezes, sempre de repente
domingo laranja e sem expectativa
ela tirava os óculos de grau
e colocava os óculos da vida

sempre, nunca nunca
ela deitava e lia um poema
reclamava da eterna bagunça
que é o coração que não pensa

e quando eu acordava, sempre despreparado
ela pegava sua luz
e a levava pro meu lado

mas disso e era só disso que ela não sabia, coitada
não via que sua perfeição incompreendida
tinha nascido para ser cuidada.

sábado, 22 de novembro de 2014

Criação

A estrela que brilha
a corda que vibra
a lágrima que brota
a respiração que falta
a ideia torta

o ato bom do homem corrompido
a corrupção do santo
a falta de sentido
em cada riso e em cada pranto

ser fraco
sentir saudade
a falta do abraço
muita vontade

o arrepio na espinha
o porquê da verdade
todo o fogo que se tinha

a cara que o choro desfez
a inércia de ser mais um
o nó da garganta de toda vez

o conforto
a incerteza
o sangue morto
a mosca na mesa

a mente doente que muda demais
sentir o chão
a paz

o cheiro da infância
a fuga
cada dança
a razão que julga

todo comércio cheio
o café sem açúcar
o bolo sem recheio
a voz na madrugada

tudo de bom que se ganha
cada esforço que se paga
a cabeça que balança
a fraqueza que atrapalha

a solidão
não ter caminho
escuridão
o pardal sem ninho

cada construção
a espera
a pupila dilatada
o meu amor por ela.



terça-feira, 14 de outubro de 2014

Ausência

Me faz falta cada um daqueles fins de tarde... tardes onde os sorrisos ficavam extraordinários, se transformando em verdade. Culpa do céu que, eu juro, pega fogo. Culpa de todos aqueles tons que cabem entre o amarelo e o vermelho, ou entre o vermelho e o amarelo, nem sei... Sei é que eles te queimam a íris, por segundo, e te fazem estreitar os olhos - foco automático. Ninguém aguenta tanta cor e tanta forma sem desequilíbrio. Mas não é só isso. Cada parte do teu corpo é esterilizada, sendo vítima do que é magnífico e sem explicação. Apenas existe. Assim como o coração bate, e a gente respira, assim como o ser humano é triste e muito capaz. O místico sol do Equador.

Saudade daquela fruta tropical, pronta para explodir sua polpa na boca de quem quiser. O mesmo fruto que desceu lá do alto daquela árvore de tronco muito grosso. Desceu, coitadinha, porque ventou demais, e achou que ali fosse o momento em que ela pudesse ser de alguém com muita fome e sede, e que seria satisfação. E foi. Mas, foi de um velho que já havia matado duas refeições, e tao cedo não comeria mais. Não comeria mais. Um olho fotografou e outro, maior que a barriga, fez daquela maravilha a sua. Cravou-lhe os dentes como a mulher faz quando é satisfeita, e o suco lhe escorreu pelos dedos, sem pressa, do jeito que o rio junino corre manso. Suculenta. Provocante. A moça que nasce no meio daquele quintal e serve de rotina para os moleques que, desde que são capazes, tentam escalar a sua fortaleza, é a mesma que quando quer, e acha bem certo, pula de lá e acha um par.

Falta da infância de subir em pé de fruta muito doce e cair e relar o joelho. Também de shampoo no olho e o mistério agoniante de achar a torneira. Das tantas vezes que confundi hidratante de pele com creme para cabelo.

Sinto por cada pipa que morreu em um fio, porque muita paixão foi gasta da sua confecção ao ultimo uso. Talvez não saiba, mas a arte de empinar pipa tem em si o mesmo mundo místico que é dos peões, e dos baloes, e de cada lata que é carro, cada pano que é boneca - o sim ou não.

Falta ainda da comida de vó e tia, que de tao boa que é, parece pecado; dos seus sorrisos de orgulho contido que são mais bonitos que qualquer um que já vi na televisão.

Saudade até daquela mosca doméstica, que nunca deixaria aquele bolo de cenoura repousando em paz. Nem um minuto. E ainda não iria só, chamaria a família para ajudar a incomodar. Tentariam cada quantia de sacarose contida naquela massa - vibrando de ânsia. E incomodando. Se chegasse até a superfície, missão cumprida e todo mundo puto. Mas não: a mãe sempre acha um menino para abanar ao redor do bolo - com um pano de prato, tampa de vasilha, mão mesmo... abano nunca tem. Ele desempenha a função com desenvoltura, como quem estudara para fazer bem feito, e com classe também - ninguém toca com a mão suja, ninguém pega mais do que deve, todos comem na hora certa. É com toda essa decência que vai realizando seu trabalho. Achando bom. É que quem não faz nada, não come.