sábado, 20 de fevereiro de 2016

O velho e o mar

Não muito tempo atrás, um amigo veio até mim sussurrar essa história...

Era bem simpático o velhinho desse conto.

Eu poderia mentir que ele ouvia jazz, entendia de vinhos ou que tinha uma confusa concepção sobre criação, mas não. O velhinho só era simpático. Ainda não havia sido contaminado pela decadência do homem desses tempos e sabia sorrir.

Todos os seus dias, pouco antes das seis ele estava lá, desamarrando o barquinho do toco para cair no mundo. Uma vez, quando bem criança, seu pai disse que se ele não cansasse o braço de remar e passasse a noite remando, ele amanheceria o dia na Europa. Ele acreditou, mas quase se esquecia da história.

Na noite que completou vinte anos, decidiu que era homem o suficiente para tal missão: calçou os únicos sapatos que tinha, arrumou em um lençol meia dúzia de camisetas, duas calças - naquela época jeans era luxo -, as duas fotos que possuía da mãe, outro lençol e jogou o volume no barco. Passou perfume e subiu pro bar do Azul. Tomou cachaça como se o mundo fosse acabar. Quando já muito tonto, avistou Luzia.

Luzia era sem dúvidas o ser humano mais bonito que já cruzara sua vista. Polparei descrevê-la para que você possa criar sua própria definição das graças de Luzia baseada em alguma Luzia que você já tenha visto. Todo contato que tiveram aquela noite foi quando seus olhos se encontraram uma única vez - naquele momento, suas duas almas eram iguais, e ele prometeu que se não encontrasse a Europa, voltaria e aquela mulher seria sua vida.

Pediu mais quase uma dezena de doses e saiu do bar, trôpego, mas sua mente era segura. Sabia que era um homem mais capaz.

Então voltou à origem, antes passando em casa para buscar o violão e uma lamparina à querosene que acompanhariam a trouxa no barquinho. Se benzeu cinco vezes e lançou o barco contra o mar.

Infelizmente não dou conta de tornar palavras o que o moço sentiu aquele instante. Ali, sua existência era clara. De repente, ele poderia ser tão feliz quanto a pessoa mais feliz do mundo: se ele prosperasse, chegaria ao lugar onde seu avô disse não haver ninguém pobre, ninguém sequer, e quem quisesse era letrado, comia bem e tinha vida longa. Se falhasse, voltaria pra ilha e teria que suar mais pra ser alguém, mas todo final de tarde era a mesma brisa e ele poderia ter o que parecia o melhor pensamento que já tivera: de tanta gente no mundo, Luzia poderia ser sua para sempre. Ela o escolhera. Ele sabia porque ninguém jamais o olhara daquele jeito. No meio de tanta cachaça, essa fora a maior certeza da sua vida.

Remava com calma, como quando a maré não tem pressa alguma, mas no fundo o que ele queria era seguir a explosão que se passava lá dentro e chegar na Europa sem parar uma vez sequer.

A imagem que ele tinha da Europa guardada no coração era a de uma ilha muito semelhante a que ele crescera, exceto pelas casas e quitandas, que eram muitas, e as pessoas que eram mais claras porque lá fazia menos sol, e mais vestidas por causa do inverno que durava muito - às vezes até fazia frio sem que chovesse, seu avô disse uma vez.

Algumas vezes desconheceu que remar era seu ofício. Nessas horas parava e se reconhecia como gente que cansa. Parou exatamente oito vezes durante as dez horas que passou remando. Tocava uma música a cada descanso, uma oração a cada parada - ele de crente, o violão de livro e a lua de Entidade.

Depois da última oração que ele tocou, quando deu fé já era tarde. As roupas espalhadas pelo barco todo, o violão machucado da água que entrou no barco, o sol escaldando. Acordou de um salto para poder olhar o horizonte. Sem o mínimo sinal de terra firme, sem previsão de chegada. A Europa não existia. Talvez nunca tenha existido além da imaginação do seu pai, e, desde então, da sua. De repente, era a pessoa mais estúpida do mundo. Ai de mim! 

Ai de mim! Com lágrimas transbordando pelos olhos.

Ai de mim! A cabeça rodava, pesada como o mundo.

Ai de mim! Nada em volta além de água e sal.

Ai de mim! Sentiu um sorriso cavar seu rosto muito vermelho, já ressecado pelo sol. Lembrou.

Meu Deus. Luzia.

Ai da gente!

Daria um livro se eu vos contasse como, mas nosso herói levou exatamente três dias e meio para voltar para casa. Seu nome era Santiago. Santiago cumpriu a promessa: descobriu quem era Luzia, fez a ela um banquinho no barco para que o mar não fosse só dele; ela, em troca, consertou seu violão para que rezassem juntos. Agora os dois eram um só, assim como barco e mar.

Mas o tempo passou e um dia ele acordou velhinho. Em um desses dias, empurrou o barco até a água com a cautela que não se via quando era rapaz, porque ele sabia que assim como ele próprio, o barquinho agora tinha suas limitações. Era dia 5 de maio. Fazia cinco anos que Luzia já não remava ao seu lado, e como fizera nos outros anos, ele passaria aquela noite no mar, amarrado no toco, é claro. Essa era uma forma de manter viva a lembrança daquela noite dos seus vinte anos, quando ele precisou se perder para que sua vida começasse a ter direção. Luzia era bússola.

Atirou no mar algumas margaridas - Luzia sempre contava que quando morresse viraria uma margarida, assim como sua mãe. Então ele se aprumou no barco e cantou duas músicas antes de deitar pra dormir. O barquinho agora parecia muito apertado. Seus olhos pesavam, mas mais urgente que dormir era a necessidade da resposta para o o sentido de existir depois que Luzia partira.

Finalmente dormira.

Naquela noite a corda que amarrava o barquinho a esse mundo se soltara, e o velhinho acordara com a tempestade lavando e levando todo o resto de vida que ele tinha. Era a mais violenta tempestade que ele jamais vira, poque ela trouxe consigo a grande epifania da vida: não há história sem amor. Ele sorriu quando enxergou a beleza do encontro de toda aquela água que vinha de cima com a imensidão do mar. O mar, a vida. A tempestade, o fim. O barquinho, o veículo.

Aquela foi a última noite que o velhinho viu o mar, mas ainda aquela noite ele encontrou Luzia para que tocassem uma oração.





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