domingo, 27 de abril de 2014

Aprendi com as flores


                        É bonito ver minha mãe sorrir pra horta. É o que ela sempre quis - desde que me entendo por gente, cada caroço e qualquer semente que eram nossos restos lhe serviam: laranja, tomate, manga, goiaba... Essas frutas polpudas que eram fáceis e apressadas, capazes de brotar em qualquer lugar das florestas tropicais do sul de Gardia, e logo davam sinal de vida sadia de planta pequena; e também pera, uva, maçã ou qualquer fruta mais temperada - ah, essas eram as melhores. Tinha um suspense em cada grãozinho daquele, porque ninguém arriscava dizer se era possível vir vida dali, não debaixo dos muito comuns trinta e cinco graus das tardes de Monte Alto.Ela sempre começava:                       

                         - Você... - hesitante - você acha que é possível crescer, Nichollas?

                        Eu olhava aqueles olhinhos brilhando de esperança, pensando em um futuro "Pois é, amiga, não é que tá nascendo uva no meu quintal? E olha que meu tempo é muito pouco pra cuidar da horta..."

                        Mas faço parte da filosofia "fique triste que a alegria será uma surpresa". Dessa vez respondi de forma mais firme:

                        - Bem, mãe, uma amiga mora a cerca de vinte quilômetros daqui, perto da fábrica de manteiga, e ela disse que a tia dela não só tem um pé de uva, mas também um de maçã e eles dão frutos. - percebi que ela levantou os olhos, que antes inspecionavam algumas manchas nos espinhos das laranjeiras, e eles me fitaram cheios de alegria. Fiz que não havia percebido, e continuei, limpando com um espinho as unhas bem sujas - Sim, frutos... Mas o problema é que eles azedam!

                         - Quê? Azedam?

                        Olhei de relance e vi que seus olhos passaram de encantados a desiludidos. Com certeza naquele momento ela pensou nas frutas de cor industrial e muito grandes que haviam nos supermercados - e que ela continuaria a comprar; e imediatamente lembrou dos frutos brilhosos e pequenos como deveriam ser, livre de qualquer química má, que estariam sempre prontos se seus pés de uva ou maçã nascessem.

                        Assenti, a boca torta em desaprovação. Ela baixou a cabeça e levantou.

                        - Tudo bem, mas as laranjeiras continuam lindas, e tem mamão no pé...

                        Desenhei um riso desanimado e saí.  O dia continuou crescendo, e ela logo se esqueceu de ficar triste.                              Não lembro se foi dois ou três dias depois, mas a flagrei regando o chão exatamente no lugar em que as sementes de uva foram plantadas. Perguntei se ela realmente tinha esperanças de que fosse nascer ao menos fruto dali, ela riu, desconcertada, e acrescentou:

                        - Não dói nada arriscar, não é Nichollas?                                      E assim o tempo corria. Vez ou outra via minha mãe dando uma escapada dos outros pés e indo regar os projetos de uva-azeda. Ela fazia isso quase sempre que chegava do trabalho, e nem se importava mais com nossa presença; era teimosa, e sabia que, se ela acreditasse, qualquer vegetal era seu.

                        Mamãe era a única vegetariana da casa, e não era seu corpo magrinho, ou sua pele muito esticada que denunciava isso, mas a graça com que ela realizava cada serviço, a disposição para ajudar qualquer pessoa, e o bem-estar que emanava dela e parecia nos penetrar. Ela era como um raio de sol tímido, incapaz de incomodar alguém, e muito provavelmente capaz de fazer sentir bem quem segue seu caminho e o respira. Não sei o porquê, mas sempre tive a impressão de que essas graças são oriundas do sabor vegetal, e acho que era por isso que seu riso era tão natural quanto a brisa de dezembro. Sua alma era cheia de coisa boa, pra gente também.

                        Não estou dizendo que pessoas vegetarianas são sempre boas. Nada disso. O que acontece é que consigo associar muito bem a paz da natureza à paz dela. São paralelas.

                        E foi pensando nisso que percebi um minúsculo pé ali perto de onde ela tinha jogado as sementes naquela tarde de domingo. Sabia que ela ficaria muito feliz quando visse. Ficou, aliás, com certeza já tinha visto. Eu não era nenhum rei da botânica, mas aquilo com certeza não era mato.

                        Nem toquei no assunto, esperei que ela me contasse durante algum almoço ou jantar, ou mesmo quando eu invadisse a horta, mas não. Acho que: como eu havia sido cético, por que deveria saber de qualquer notícia do pezinho?

                        Não foi depois de muitos dias que percebi um pequeno tronco retorcido, algumas folhas já grandes, que pareciam repartidas em cinco lóbulos pontiagudos. O pé foi crescendo, crescendo... e cresceu muito. Não mudava muito, mas cresceu surpreendentemente rápido.

                        Em poucos meses, notei umas flores esverdeadas em ramos, e me surpreendi. Não acreditava que dali realmente viria uva. Sempre que ela me via nos arredores da planta, começava a falar de qualquer outra, ou de qualquer outra coisa, e ignorava minha relação com o pé de uva assim como eu havia ignorado sua esperança dele ter nascido.

                        Lembro bem demais. Foi num sábado de manhã cedo. Junto do domingo, aquele era o único dia em que eu não ia cedinho para a universidade, mas não conseguia dormir mais do que dormia todo dia. Acordei primeiro que todo mundo e fui para o quintal. A hortinha era separada do quintal por uma portinhola e uma cerca de arame cheia de buraquinhos. Abri a portinhola e andei um pouco para a direita, onde eu me lembrava de estar uma uveira quase adulta. Nada!

                        Vi uma planta adulta, sadia e com filhos lindos! Sim, filhos já prontos para o mundo. Eu nem havia percebido, mas muito tempo se passara desde que havia vindo visitar o pé pela última vez. Me deparei com várias frutas atraentes. Mediam, acho, três centímetros no seu eixo maior(considerando a uva uma elipse), e eram muito brilhosas e roxas. Caminhei até a pequena árvore e não resisti à tentação: puxei o cacho e arranquei uma daquelas suculentas esferas. Joguei na boca e ela espocou, fazendo um barulhinho molhado muito agradável, ainda mais pelo que ele revelou:

                        A uva era doce feito mel, e seu sabor era diferente daquelas de supermercado. Tinha uma coisa fresca e saudável por detrás, e quando vi já havia colocado outra na boca... e mais outra, e mais outra, e o cacho todo...                                            Minha mãe flagrou aquela cena constrangedora. Eu estava de cócoras, de costa pra ela - o que me fez me sentir mais envergonhado, porque não sabia há quanto tempo ela estava ali, a boca e os dentes melados do roxo da casca.

                        Ela riu uma risada gostosa. Com as mãos unidas no bolso da camisola, disse, de face radiante:                        - Elas não parecem muito azedas, hein?

                        Tenho estado escabreado desde então.


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